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“nao Sei Por Que Aceitei Ser Submetido a Tudo Isso. Voce Fica Fragilizado, Preso Aquilo”, Diz Ex-seminarista Vitima De Abuso Sexual

By Aiuri Rebello
El Pais
December 21, 2020

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-20/nao-sei-por-que-aceitei-ser-submetido-a-tudo-isso-e-uma-construcao-voce-fica-muito-fragilizado-preso-aquilo.html?rel=listapoyo

No relato abaixo, um dos quatro ex-seminaristas que fez a denuncia ao MP e as autoridades eclesiasticas, hoje um estudante universitario de 26 anos, conta sua historia e fala sobre a relacao com a Igreja Catolica, sua religiosidade e sobre o assedio e abuso sexual do qual afirma ter sido vitima por parte do arcebispo metropolitano de Belem, dom Alberto Taveira Correa.

“Minha familia e muito religiosa e cresci frequentando a igreja. Aos 10 anos de idade ja era coroinha e passei a me interessar muito pelas questoes sacerdotais. Minha vida sempre foi escola, casa e paroquia. Quando eu tinha 14 anos, todo os dias estava na igreja e participava de muitas atividades la. Em 2010, eu ja tinha 15 anos, dom Alberto chegou a Belem. Eu o conheci logo no comeco do ano na paroquia em que eu trabalhava. Estava organizando a liturgia e participei de uma cerimonia do lado dele. Apos o final, ele me chamou num canto da sacristia e perguntou se eu tinha desejo de ser padre. Conversamos um pouco, ele escreveu o numero dele em um pedaco de papel e disse ‘Me ligue, eu vou viajar para Roma e quando eu voltar voce me liga para a gente conversar’. Guardei o numero e nao liguei. Passou o tempo e voltei a encontra-lo em uma missa em agosto em outra igreja. Ele me cobrou por nao ter ligado para ele. No mes seguinte, e a essa altura eu ja tinha feito 16 anos, o encontrei de novo em outra igreja. Ao final ele me cumprimentou e perguntou o que eu ia fazer. Respondi que ia para casa. ‘Entao vamos comigo na minha residencia para jantar’, disse ele. ‘Ta bom, eu vou’, respondi.

Do jantar participaram outras pessoas, que estavam hospedadas no palacete dele, e depois da refeicao ele me chamou no escritorio dele. Pediu para eu me apresentar de novo, falar da minha familia e o que eu achava de ser padre. Perguntou como estava o colegio, se eu estava namorando, se tinha muitos amigos. Disse que ainda nao tinha tido nenhuma namorada e que tinha poucos amigos, sempre fui muito sozinho mesmo. Ai ele ja perguntou se eu sentia atracao por mulher ou por homem. Fiquei surpreso com a pergunta, acho que ainda mais porque naquele momento da minha vida eu nao sabia a resposta, estava confuso. Tambem porque era estranho ter uma conversa daquela com um homem na casa dos seus 60 anos de idade. Ele insistiu, disse que era uma questao importante. Ai ele do nada me perguntou: ‘voce se masturba?’. Fiquei chocado, constrangido, assustado. Ele percebeu, mudou de assunto e encerrou o papo. Me mandou procurar um outro padre que e com quem eu ia comecar os encontros vocacionais antes de entrar no seminario.

No primeiro semestre do ano seguinte cheguei a ter uns tres outros encontros reservados com o arcebispo, que ele marcou, enquanto me preparava para entrar no seminario. Sempre naquela pegada, cada vez mais aberta: falando sobre minha sexualidade, masturbacao, pornografia, que tipo de pornografia eu gostava… e eu sempre muito fechado. Ele ficava bravo, dizia que eu tinha que me abrir mais, aquela coisa. No final do ano, quando a turma que iria entrar no seminario em 2012 estava para ser definida, tive um novo encontro com Dom Alberto. Ele me disse que o padre tinha me avaliado mal, que me achava muito fechado, mas que ele achava que o seminario era o lugar certo para corrigir esse tipo de coisa e no final eu recebi a carta-convite para ingressar.

Comecei no Seminario Pio X no inicio de 2012 com 17 anos de idade. Minha cabeca estava um caos. Sem o apoio de toda a familia na minha decisao, sai de casa menor de idade, nao estava bem resolvido em varios aspectos e fui para o internato do seminario. La o contato com o mundo e muito restrito. Nao tem computador, nao tem televisao... celular podia ter, mas so para uso no quarto, cada um tem seu proprio quarto. De qualquer forma tambem nao tinha sinal. Era muito dificil conseguir comunicacao com o mundo de fora. No primeiro ano, nos nao saimos nem para visitar nossas familias. Elas podem ir la ver a gente apenas um vez por mes. Ficamos la, uma especie de um convento com o claustro, o patio no meio. Anexo, fica o predio do seminario principal, para quem ja passou por esse ano de entrada.

Durante muitos meses eu nao fiz os atendimentos espirituais com o bispo na casa dele. Apos alguns meses de seminario, chegou a minha vez de ir passar o final de semana na casa do arcebispo. Tinha escala para isso e todo sabado e domingo ia uma dupla de internos do seminario. Chegavamos na casa dele, e ele ou um ajudante apresentava a agenda do final de semana e a hora em que ele ia conversar conosco a sos. Quando acabavam os compromissos do dia e voltavamos para a casa dele, sempre tinha essa reuniao. No meu caso, neste primeiro final de semana, minha “sessao” foi a noite. Eu estava em um quarto de hospedes la embaixo, no piso inferior, recebi uma chamada no quarto, era ele e eu subi para nossa conversa. Cheguei la e fiquei sozinho com ele no quarto. Disse que eu era gay, enumerou la uns episodios do seminario, e voltou ao mesmo assunto de sempre: pornografia, se eu tinha atracao por alguem do seminario, e por ai vai... terminou o esculacho psicologico e fui dormir. Nesse ano ainda passei mais um final de semana com ele, no segundo semestre, e no comeco de 2013 fui para o edificio maior do internato, com 18 anos.

Depois de um tempo, um colega seminarista se apaixonou por mim. A gente ficou muito amigo, muito proximo, e ele se apaixonou... no comeco eu resisti, nao sabia nem se eu era mesmo homossexual, mas acabei me envolvendo e tendo um relacionamento com ele. Depois de uns meses, no final do primeiro semestre, virou um escandalo. Colegas flagraram a gente junto e contaram para todo mundo. A gente ia sair de ferias no final daquela semana, lembro bem. A gente sabia que ia ser expulso e nao ia voltar para o proximo semestre. Resolvi chamar dom Alberto e pedir para conversar com ele. Perguntei o que ia acontecer, se era para eu levar todas as minhas coisas embora. Ele respondeu que nao podia fazer nada, que era para eu ir para minha casa e aguardar.

Tres dias depois recebi uma ligacao do reitor, dizendo que tinha passado a situacao para dom Alberto e que ia me levar para conversar com ele. Chegamos la e os outros dois rapazes, o menino com quem eu estava tendo um caso e o outro com quem ele estava brigando e denunciou a gente, ja estavam la. Ele conversou com um por um. Eu fui o ultimo. Todos foram embora e eu entrei para conversar com ele, que se mostrou preocupado e afetuoso. Falei tudo o que tinha acontecido para ele, e perguntei o que ia acontecer. Ele disse que nao dava para eu voltar para a formacao agora, que era para eu me afastar. ‘Entao lhe proponho tres coisas. Voce nao vai para casa para nao dar bandeira la, vamos achar uma paroquia para voce ficar ate a poeira baixar. Segundo, vamos fazer um caminho pessoal de construcao e terceiro vou te encaminhar para uma terapia especial, com psicologos. Eu concordei.

Nesse periodo de ferias fui la passar o final de semana com ele de novo. Foi ai que comecou o tratamento espiritual propriamente dito. Consiste primeiro em tratar a homossexualidade como uma doenca que tem cura, e ele e a cura para essa doenca. Te da o livro, que oferece uma especie de embasamento teorico para o que ele faz, e submete voce a sessoes de terapia profissional que eu desconfio que servem para passar relatorios para ele depois e ajuda-lo a te domar melhor, porque ele sempre sabia de detalhes. Na primeira parte voce tem que se assumir como homossexual. No meu caso isso aconteceu com muito assedio moral, tortura psicologica, com ele sempre muito agressivo, gritando e batendo na mesa, falando coisas horriveis e me colocando em uma posicao inferior desde que comecaram os encontros. Fora as ameacas, sofri muitas ameacas, eu nao acreditava no pesadelo que estava vivendo naquele momento. Ai tive que admitir, mesmo sem saber se era mesmo homossexual, essa questao sempre foi uma confusao muito grande na minha cabeca. Uma hora eu disse que era, levou varias sessoes para eu admitir.

Feita essa confissao, ele comeca a segunda parte do ‘tratamento’. Intensifica as ameacas exigindo sigilo absoluto de tudo. A corda sempre estoura para o lado mais fraco, quem fica para o final da novela sempre chora, ele usava esse tipo de frase de efeito. Nao podia contar nada para ninguem. No meu caso, ele fazia o que queria comigo. Chegou a me ameacar de contar para a minha familia o que estava acontecendo. Ficava me xingando enquanto abusava de mim. [Me chamava de] bicha, veado, esse tipo de coisa, e dizia que se eu nao melhorasse, nao obedecesse para sarar, ele ia contar tudo pra minha familia, ia contar para minha mae tudo o que eu era e tinha feito.

Tem essas sessoes de tortura psicologica, ai comecam os exercicios de ‘curar a nudez’, que era ficar os dois nus juntos trancados no quarto, algumas vezes com rezas em lugares especificos do seu corpo... ele dizia que um homossexual nao conseguia ficar sem roupa na frente de outro homem nu, entao que fazer esse exercicio era importante ate conseguir resistir. Algumas vezes eu achei que ele ia me beijar, chegou a pegar no meu penis tentando uma erecao minha, fez eu me masturbar na frente dele...

Nao quero entrar em mais detalhes, ja contei tudo varias vezes para o pessoal da Igreja, policia, ministerio publico, agora entrevista… E muito doloroso falar disso tudo. Passei por essa provacao de julho a outubro de 2013, foram cerca de dez encontros, dois ou tres por mes. Acabei ficando em casa nesse periodo, e disse que estava para ser enviado para um estagio em uma paroquia.

Em outubro fui mandado como ajudante do padre a uma paroquia de fato. Sete meses depois voltei ao seminario como aluno interno, conforme ele havia prometido, e um ano e meio depois de ter saido pela primeira vez, em dezembro de 2014, fui embora de vez. Eu tinha ficado revoltado, arrumava muita confusao e nao me adequei mais ao internato. Nessa epoca ja nao me encontrava mais com dom Alberto. Hoje nao sei exatamente por que acabei aceitando ser submetido a tudo isso. E uma construcao, voce fica muito fragilizado psicologicamente, preso aquilo. Chega um determinado momento em que voce sabe o que vai acontecer e vai mesmo assim, se sente obrigado. Voce chega a duvidar de si mesmo. Se voce e ou nao e, se voce realmente e uma pessoa sordida, que nao presta, voce chega a acreditar nele, fica completamente manipulado e transtornado. Ele te joga para baixo com muita psicologia, voce perde a nocao e o chao.

E junto ele oferece uma esperanca, e ele quem decide se voce continua na Igreja ou nao, te chantageia, se coloca em uma posicao de benevolencia com voce. Pelo menos no meu caso, tudo isso foi uma construcao muito forte. Fiquei paralisado e demorei para perceber, elaborar tudo o que tinha acontecido”.

 

 

 

 

 




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