Bispo José Ornelas investigado pelo MP após denúncia de encobrimento de abusos sexuais

LEIRIA (PORTUGAL)
Público [Lisbon, Portugal]

October 1, 2022

By Ana Dias Cordeiro

O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e bispo de Leiria-Fátima diz ao PÚBLICO que cumpriu “com toda a sinceridade com os procedimentos adequados”. Denúncia chegou à Procuradoria-Geral da República através de Marcelo Rebelo de Sousa.

José Ornelas, bispo da Diocese de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, está a ser alvo de investigações pelo Ministério Público por eventual “comparticipação em encobrimento” de casos de abusos sexuais sobre crianças acolhidas num orfanato dirigido por um padre dehoniano numa cidade da província moçambicana da Zambézia.

A denúncia, confirmou ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República, chegou em Setembro deste ano através da Presidência da República, mas só esta semana foi decidido avançar com a investigação.

O caso tem mais de dez anos. Em 2011, quando o bispo José Ornelas liderava a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus. Nessa altura, um professor português ouviu de um aluno que frequentava o Centro Polivalente Leão Dehon o relato de alegados abusos cometidos sobre crianças no orfanato dirigido pelo padre Luciano Cominotti.

A denúncia não deixou margem para dúvidas ao professor João Oliveira, que viu nesse gesto do rapaz, assustado e hesitante, a coragem para proteger os mais novos que ainda estariam a ser alvo de abusos. A situação teria sido vivida anos antes pelos mais velhos que agora estariam dispostos a falar.

Na esperança de que José Ornelas, alto representante dos dehonianos junto do Vaticano e líder mundial desta congregação, tomasse medidas, João Oliveira deu-lhe conhecimento do caso. O resultado foram duas cartas a agradecer “os alertas”, dizendo que o padre Cominotti não estava sob sua autoridade, mas da diocese, e que contra o padre Ilario Verri (director da escola) não existiam quaisquer indícios.

Onze anos passados e para que o caso não caísse no esquecimento, João Oliveira enviou uma denúncia, agora visando o próprio bispo José Ornelas por inacção. Desta vez, fez chegar a queixa directamente a Marcelo Rebelo de Sousa, que a remeteu à Procuradoria-Geral da República, como confirmou ao PÚBLICO o chefe da Casa Civil da Presidência da República, Fernando Frutuoso de Melo.

Contactado pelo PÚBLICO, o bispo José Ornelas diz que não se pronuncia sobre a eventualidade de poder vir a ser chamado a depor numa investigação em que é — de momento — o único visado. “Não tenho conhecimento formal dessa denúncia. Não sinto que tenha existido negligência da minha parte.”

“Cumpri com toda a sinceridade com os procedimentos adequados”, responde ao PÚBLICO, por escrito. “Nunca, até às denúncias do professor João Oliveira, tinha havido qualquer notícia sobre abuso de crianças no nosso centro”, diz.

Naquele momento, em 2011, e perante essas denúncias, decidiu abrir “um inquérito interno” do qual não existe registo por ter sido um inquérito informal, confirma o líder da CEP. A investigação consistiu em indagar “professores e alunos para apurar da possibilidade de existência de qualquer abuso”.

Ainda sobre a escola frequentada por algumas das alegadas vítimas de abusos supostamente praticados no orfanato, garante que, “se tivesse surgido qualquer dúvida, uma que fosse, da possibilidade de abusos, não teria dúvidas de que teria dado instruções para que tal fosse participado às autoridades competentes”.

Na denúncia que chegou ao DIAP e a que o PÚBLICO teve acesso, lê-se que o actual presidente da Conferência Episcopal Portuguesa “omitiu das autoridades o abuso de vários menores enquanto presidente da Ordem dos Dehonianos”; e ainda que o bispo português, que, entre 2003 e 2015, foi o chefe da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos), “protegeu abusadores de menores em duas ocasiões distintas”. A primeira, na cidade de Gurúè, em Moçambique; a segunda em Portugal.

A denúncia não visa agora os padres italianos, como as de 2011, mas o bispo português que, enquanto presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), criou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. A comissão está comprometida com a “descoberta da verdade”, diz José Ornelas ao PÚBLICO. “Pessoalmente, já participei ou tomei parte na participação às autoridades judiciárias ocorrências desta natureza; e fá-lo-ei sempre, desde que exista alguma razoabilidade na acusação.” Algo que considera não ter acontecido neste caso de que teve conhecimento em 2011.

Nesse ano, José Ornelas chegou a responder ao professor João Oliveira, em duas cartas que o bispo partilhou esta semana com o PÚBLICO.

Nessas missivas, com datas de 7 de Fevereiro e de 14 de Março de 2011, referia que “o padre Luciano e a obra por ele dirigida [o orfanato] não dependem absolutamente da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, mas do bispo do Gurúè”, para concluir, por isso: “Não temos, pois qualquer interferência ou autoridade sobre quanto lá se passa.”

Qual o crime em causa

Chegada a denúncia à PGR, a mesma foi analisada por duas procuradoras. Ambas determinaram a abertura de uma investigação, como confirmou o PÚBLICO junto do processo consultado no DIAP de Lisboa. Estando ainda no início, não houve lugar à constituição de arguidos.

Além de apontar no sentido da “comparticipação em encobrimento”, o despacho da procuradora Maria José Magalhães faz referência a “crimes ocorridos em Portugal”.

O crime de encobrimento não existe nestes termos. O Código Penal prevê o crime de “favorecimento pessoal” para comportamentos que “prejudiquem a investigação criminal” ou a “execução da pena ou medida de segurança”, nomeadamente “ajudando alguém a fugir à polícia ou a destruir provas”, explica, em abstracto e não sobre este caso, Conceição Cunha, professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto.

“No fundo, estão criminalizadas formas de ajudar uma pessoa a fugir à Justiça com a consciência de que aquela pessoa pode ter cometido um crime (no caso de estar a ser alvo de investigação) ou sabendo mesmo que já foi condenada. Encobrir ou favorecer no sentido de ajudar, com a intenção ou consciência de evitar que essa pessoa enfrente a Justiça”, acrescenta, citando o Código Penal.

Especialista e professora de Direito Criminal, Conceição Cunha diz ainda que este crime pode ser imputado a qualquer cidadão, incluindo membros do clero, também abrangidos pelas normas jurídicas próprias da Igreja Católica constantes do Direito Canónico. “Pela forma como o tipo legal de crime está redigido”, referindo a acção de impedir ou frustrar a obtenção de prova, o favorecimento pessoal “implica que a investigação já tenha começado”; mas também “há uma parte do artigo [neste crime] que se refere a impedir actividade preventiva de autoridade competente — e só nesta parte poderia caber o comportamento de alguém que, por exemplo, impede que a polícia se aproxime do local do crime”, o que se aplicaria a uma fase anterior à da investigação.

Moçambique, 2011

Em 2011, no orfanato na cidade do Gurúè, em Moçambique, residiam cerca de 50 crianças, algumas das quais frequentavam a escola do Centro Polivalente Leão Dehon, perto dali, e gerida por um outro padre —este da Ordem dos Dehonianos. O responsável pelo orfanato, Luciano Cominotti, dependia da Diocese de Gurúè; Ilario Verri era sacerdote da Ordem dos Dehonianos. Em nenhum dos casos o bispo José Ornelas entendeu haver motivo para tomar medidas, como disse ao PÚBLICO.

Não havia lugar à suspensão do padre Ilario Verri como director da escola, porque as denúncias não se haviam confirmado, explica o próprio bispo José Ornelas.

Relativamente ao padre Cominotti, que dirigia o orfanato, não estava sob a sua autoridade, uma vez que não era um padre diocesano. O que sabia dos casos denunciados no orfanato? “Em concreto nada. Sentia-se algum mal-estar relativamente ao funcionamento do orfanato”, responde ao PÚBLICO por escrito a partir de Roma, onde se encontrava ontem.

Ambos os padres são italianos. As crianças que se dizem vítimas são moçambicanas. João Oliveira, que denunciou a situação em Fevereiro de 2011, é português. Tinha chegado à escola da missão dehoniana em Janeiro de 2010 e, ao longo desse ano, ganhou a confiança dos seus alunos, quando estes perceberam que não estava ali por ser padre: João Oliveira tinha sido colocado ao abrigo do programa Inov Mundus da cooperação portuguesa, para ajudar a missão a desenvolver um projecto educativo.

Pouco depois de revelar o segredo e, por medo de represálias, o rapaz deixou Gurúè. Sem revelar a sua identidade ou a de outras vítimas e eventuais testemunhas por não ter garantias da sua protecção, João Oliveira entregou uma denúncia formal às autoridades policiais e judiciais em Moçambique, Portugal e Itália. Em Portugal, e tratando-se de alegados crimes em Moçambique, a queixa foi arquivada por “incompetência territorial”.

Em Moçambique, um processo foi aberto, fechado e reaberto em 2020 para investigar o padre Luciano Cominotti. Em Itália, um processo foi iniciado em 2013 para investigar o padre Ilario Verri. O mesmo terá sido ilibado, segundo disse D. José Ornelas no sentido de reforçar que tinha razão ao não dar como sustentada a denúncia entregue por João Oliveira. O PÚBLICO tentou esclarecer junto das procuradorias dos dois países qual a situação ou o desfecho das investigações, sem sucesso até ao fecho desta edição.

Em 2014, contactado pelo PÚBLICO sobre este caso, José Ornelas disse não ter autoridade sobre o padre que dirigia o orfanato. “O padre Luciano é um padre da diocese do Gurúè. Nunca pertenceu à nossa Congregação, nem esta tem qualquer autoridade ou responsabilidade sobre ele. Trabalhamos na mesma Igreja e é natural que as pessoas se conheçam e colaborem para objectivos comuns, mas cada um dentro do seu estilo de vida, a sua missão e a sua responsabilidade”, dizia então em resposta por escrito.

Três anos antes, semelhante resposta tinha sido dada ao professor que denunciou a situação. Nas cartas que agora enviou ao PÚBLICO, José Ornelas dizia estar grato a João Oliveira de este o ter posto “ao corrente de situações deploráveis de que [o professor] teve conhecimento, enquanto se encontrava no Centro Polivalente Leão Dehon do Gurúè”.

Terminava aconselhando João Oliveira a fazer “chegar ao bispo do Gurúè as suas observações sobre esse tema” e dizia, sem concretizar: “Da nossa parte procuraremos comunicar-lhe as suas preocupações.”

Comunicou as preocupações do denunciante ao bispo da Diocese de Gurúè, questionou o PÚBLICO? “Sim. Num encontro que tive com o bispo.” Dessa comunicação não existe qualquer registo escrito.

https://www.publico.pt/2022/10/01/sociedade/investigacao/bispo-jose-ornelas-investigado-mp-apos-denuncia-encobrimento-abusos-sexuais-2022496