Abusos na Igreja: 49 relatos de sofrimento sem fim. “Se o Inferno existe, ele vai lá parar!”

LISBON (PORTUGAL)
Público [Lisbon, Portugal]

February 14, 2023

By Patrícia Carvalho

O relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica inclui 49 casos dos 512 testemunhos que foram validados

Os relatos recolhidos e o tratamento de dados feito pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica permitem perceber que estes actos de violência ocorreram em todos os distritos do país, sob todas as formas, e atravessando, praticamente, todas as faixas etárias da infância e da adolescência. O relatório indica que as crianças mais novas vítimas de abuso tinham dois e três anos, as mais velhas, 17. O documento não detalha, contudo, todas as histórias que chegaram ao conhecimento dos membros da comissão, tendo sido seleccionados 49 casos, dos 512 testemunhos validados, que são apresentados com algum detalhe, parte dos quais foram já revelados na conferência de apresentação.

Agrupando as situações de abuso pelos diferentes espaços onde estes terão ocorrido – da casa do padre ou da família, a igrejas, seminários, acampamentos, confessionários ou escolas – os relatores traçam um roteiro de sofrimento em que algo se torna muito claro: independentemente do tipo de abuso sofrido, nenhuma das vítimas saiu incólume da experiência. Uma mulher vítima de abuso entre os cinco e os dez anos por um padre da instituição religiosa em que residia admite ter tentado o suicídio, mais do que uma vez; um homem vítima de abuso aos 12 anos por rapazes mais velhos da instituição em que foi acolhido relata viver “numa teia psicológica”, em que se misturam “fobias sociais, medos, irritabilidade, ansiedade, instabilidade, períodos de depressão, na minoração do sofrimento”; a culpa aparece repetida em vários relatos; um homem vítima de abuso aos oito anos, em casa, por um padre que lhe dava explicações, amigo da família, refere-se a “dúvidas sobre a sexualidade” e diz que a experiência de que foi vítima teve “um efeito devastador” na sua vida.

E torna-se também evidente que mesmo uma experiência efémera, ocorrida uma única vez, não implica um trauma mais fácil de esquecer ou de lidar. M., como é identificado no relatório, tinha seis anos quando foi vítima de abuso, uma única vez, pelo padre que o estava a preparar para a primeira comunhão. No e-mail que enviou à comissão, desabafa: “O perdão será talvez o maior e mais nobre dos ensinamentos de Cristo, mas aqueles dez minutos com o dito padre pedófilo deixaram-me para todo o sempre a absoluta certeza de que o imperdoável também existe.”

Alguns destes relatos ficam aqui registados.

Violado aos cinco anos pelo director do colégio católico

M. vivia numa das ex-colónias portuguesas, na década de 1960, quando o pai morreu, tinha ele três anos. Filho do meio entre cinco irmãos, e com a mãe sem meios para os manter a todos, foi enviado para um colégio católico a cerca de 500 quilómetros do local onde morava. Os abusos começaram logo depois.

“Uma semana depois de chegar, um padre que era o director disse que eu precisava de protecção. Por ser novinho. Era um padre português, sim. Nessa protecção eu tinha que fazer o que ele queria que eu fizesse. Foi a primeira violação”, relatou no e-mail enviado à comissão. Apesar de ser muito pequeno, fugiu para casa de um familiar, mas não contou o que lhe tinha acontecido e os seus pedidos insistentes para não ser enviado de volta para o colégio não foram atendidos. “Quando voltei, o padre usava daquelas chaves antigas com uma grande argola e deu-me com a chave na cabeça de castigo por ter fugido e leva-me à força para o quarto, agarrando-me com toda a força e viola-me pela segunda vez.”

Desta vez, não sabe bem como, apanhou uma camioneta de regresso para casa. A mãe pagou a viagem e ele nunca mais regressou ao colégio. Até hoje não sabe se ela, católica fervorosa, se terá apercebido do que lhe tinha acontecido, porque só foi capaz de lhe contar o sucedido 27 anos depois. Diz ter-se tornado “muito agressivo” e ter tido “uma adolescência muito sofrida e solitária, com poucos amigos.” Recentemente, uma irmã incentivou-o a procurar um psicólogo, mas diz que não podia suportar mais os custos das consultas online – 50 euros, três vezes por semana. Desistiu.

Freiras levavam F. ao abusador

Para F., nascida na década de 1970, os abusos prolongaram-se durante todo o tempo em que frequentou a escola primária, num orfanato, entre os cinco e os dez anos. Era um espaço com cerca de 300 raparigas, gerido por freiras, e o padre que praticou diferentes abusos sobre ela – desde toques a beijos, sexo anal e visualização de pornografia – levava-a para o quarto dele ou para a sacristia para a atacar, pelo menos uma vez por semana.

Contou à comissão, no preenchimento do inquérito online e na entrevista por Zoom que se seguiu, que os abusos eram praticados “com a conivência das freiras”, que a mandavam chamar e a levavam junto do padre. Quando contou a uma delas o que lhe estava a acontecer, foi castigada. “[Disse-me] que estava maluca e era mentirosa. Fiquei três dias sem comer.” Não teve mais sorte com a mãe – não só não acreditou como a acusou de ser culpada do que pudesse estar a acontecer. E, aos 13 anos, já fora do alcance do padre, foi também violada pelo então companheiro da mãe.

Saiu de casa aos 15 anos, as marcas ficaram para sempre. “Nunca quis ter filhos porque passei pelos maiores horrores, não me sendo permitido ser criança”, contou. Procurou ajuda médica aos 28 anos, quando o seu primeiro casamento acabou, mas diz não ter encontrado o que precisava, junto dos psicólogos e psiquiatras que consultou, e reconhece ter tentado o suicídio.

“Era um animal, um molestador em grande escala”

Para a pequena F., com sete anos, nascida na década de 1970, o abuso acontecia no confessionário do padre, que tinha “uma posição de destaque na diocese, no Norte”, ao longo do ano em que tinha de se confessar semanalmente como parte da sua preparação para a primeira comunhão. Diz que o padre, com cerca de 30 ou 40 anos, começava a tocá-la “pelas pernas acima” enquanto a atormentava com “palavras e ditos obscenos”, incentivando-a a praticar actos sexuais com outras crianças, incluindo o irmão da menina, então adolescente. Sem perceber o que estava em causa, acabou por masturbar o irmão, que, surpreendido e assustado, a ouviu dizer que só “o senhor padre queria que […][ela] lhe tirasse o leite.” A cena repetiu-se “três ou quatro vezes”, até o irmão a impedir de continuar.

No inquérito online que preencheu, F. mostra-se certa de que o padre repetiu este comportamento “toda a vida”, lamentando que “centenas, centenas, centenas” possam ter passado por algo similar ao que lhe aconteceu. “Era no confessionário, como o de muitas outras meninas da época que toda a gente sabe muito bem identificar, dado que a pessoa em causa era um animal, molestador em larga escala, um monstro que nunca ninguém quis acusar, dado o seu poder que por agora ainda detém.”

Sem perceber o que estava a acontecer

A preparação para a primeira comunhão foi também o momento em que M., nascido na década de 1970, experimentou os abusos por parte do padre da aldeia onde morava. Tinha, então, seis anos. Depois da catequese, o padre chamava as crianças, uma a uma, meninos e meninas, para uma sala fechada.

“Não sei o que se passou com os outros, apenas sei que o menino antes de mim saiu da sala em pranto, mas comigo o padre sentou-me no seu colo, abraçou-me, beijou-me, acariciou-me por todo o corpo e nas partes íntimas, enquanto ele gemia e eu conseguia sentir-lhe a erecção nas minhas coxas e depois a humidade quente da sua ejaculação.” Apesar da “aflição, nojo, asco” que se recorda de sentir na altura, M. diz que nem percebeu o que estava a acontecer. Mas aqueles sentimentos estenderam-se da figura do abusador a toda a Igreja e conta, no e-mail enviado à comissão, que, mal pôde, abandonou qualquer ligação à instituição. O esquecimento é que nunca chegou. “O perdão será talvez o maior e mais nobre dos ensinamentos de Cristo, mas aqueles dez minutos com o dito padre pedófilo deixaram-me para todo o sempre a absoluta certeza de que o imperdoável também existe”, escreveu.

O abusador amigo da família

Nascido na década de 1990, M. tinha oito anos quando começaram os abusos que se prolongariam por quatro anos, sempre com sítio e hora marcados: ao final dos dias de semana, quando o jovem padre, amigo da família, aparecia em sua casa para lhe dar explicações, no escritório da habitação. “Começamos por brincar ou por estudar?”, perguntava-lhe o abusador, antes de iniciar a violência que implicava a manipulação dos órgãos genitais e sexo oral. Diz nunca ter revelado o que lhe acontecia, tolhido pelas ameaças do padre de que revelaria aos seus amigos que ele era “um mariquinhas”. Mais tarde, haveria de se debater com dúvidas sobre a sua própria sexualidade e diz que a experiência teve sobre ele “um efeito devastador”. Era oriundo de uma família de classe média e vivia numa grande cidade do país.

Duas semanas de terror

Nascido na década de 1960, M. tinha oito anos quando as férias de cerca de duas semanas na casa dos avós se transformaram num pesadelo. O padre, com cerca de 50 anos, chegava para visitar os idosos “que davam muito dinheiro para a paróquia que estava em obras”. E era nessas ocasiões que se oferecia para levar a criança a passear pela quinta, para lhe “ensinar algumas coisas”, aproveitando o facto de o menino estar com problemas de comportamento na escola.

Longe dos olhares das restantes pessoas, nesses passeios o padre praticava o mais variado tipo de abusos, incluindo masturbação e sexo oral, associados ao que o homem descreve como uma “tara” – o hábito de atar os órgãos genitais da criança com um fio, para que ficassem mais intumescidos. Receoso de que os empregados dos avós encontrassem sinais do seu esperma no chão, o menino voltava atrás, depois de o padre o deixar e tapava os vestígios com terra.

Já adulto, confessa que um dos seus maiores desejos era ser feio porque não esquece as palavras do padre, naqueles momentos: “Dizia que eu era bonito de mais para ser um rapaz…” No inquérito online que preencheu, o homem descreve como “um nojo” o que lhe aconteceu, e ainda hoje se questiona: “Como? De um homem que se mostrava tão bom pela frente e era um tarado por debaixo daquela pele…”

À frente de toda a sala de aula

F. tinha dez anos, quando as aulas de Português administradas por um padre no colégio católico que frequentava se tornaram o palco de abusos das várias alunas da sua turma. O momento escolhido era quando pedia às crianças para lerem um qualquer texto em voz alta. “Punha-se por trás das nossas cabeças, metia a mão dentro das nossas blusas/camisolas e apalpava-nos as maminhas. Ficava claramente excitado e ia roçando o pénis nas nossas cabeças. Outras vezes, em simultâneo, metia os dedos que tresandavam a tabaco nas nossas bocas e ia mexendo dentro na nossa boca e na nossa língua.”https://www.publico.pt/2023/02/12/mundo/noticia/abusos-sexuais-igreja-anos-investigacoes-historia-repete-2038373/embed?FromApp=1

Os rapazes, percebendo que algo de incómodo se passava com as colegas, interrompiam a leitura, fazendo perguntas, tentando travar o que estava a acontecer, mesmo não sabendo bem o que era. Mas os abusos prolongaram-se por todo o ano lectivo e nem o facto de ter contado aos pais e a outros membros da família teve qualquer influência. “Não sei se faziam de conta que não percebiam ou se simplesmente achavam aceitável.” Ainda hoje não aceita que lhe toquem no peito, mesmo em relações íntimas.

Um saco de roupa nova

Foi no final da catequese que a menina, com oito anos (nascida na década de 1970), foi aliciada pelo padre a ir a sua casa, com a desculpa de que tinham chegado roupas novas de Portugal para as crianças que frequentavam a igreja e que ela poderia escolher o que quisesse.

F. morava com a família numa antiga colónia africana portuguesa e tinha uma situação complicada em casa, com violência doméstica a fazer parte do seu dia-a-dia. Nada no convite do padre a fez desconfiar. Só quando se viu completamente nua, depois de ele lhe ter sugerido, já em casa, que se despisse, para experimentar as roupas e poder escolher o que queria levar, é que diz ter sentido “medo”.

“O padre acalmou-me dizendo para eu não ter medo que eu ia receber todas as roupas que eu quisesse, mas antes tenho que fazer uma coisa que não podes contar a ninguém porque é pecado. Não podes contar a ninguém e se contares aos teus pais ou a outra pessoa vais para o Inferno. Não percebi nada, mas aceitei o ‘nosso segredo’”, relatou à comissão, por e-mail e, posteriormente, numa entrevista presencial. Nessa tarde foi violada duas vezes pelo padre, primeiro no quarto, depois no banho, que ele lhe ordenou que tomasse. Mandou-a calar quando ela chorou, tapou-lhe a boca com as mãos. No final, mandou-a para casa com um saco de roupa nova. “Eu estava com tantas dores que as minhas pernas tremiam. Ajudou-me a vestir e lembrou-me mais uma vez que eu não podia contar a ninguém o que se tinha passado. Peguei num saco cheio de roupa e saí, nem conseguia correr, testemunhou. Escondeu o que tinha acontecido, conviveu com pesadelos e só mais tarde percebeu porque é que a partir daquela altura começou a urinar na cama. “Se o Inferno existe, ele vai lá parar!”

Um ano de abusos e uma gravidez

A menina de dez anos foi aprender música e foi nessa altura que começou a ter mais contacto com o padre da freguesia. Nascera na década de 1960 e vivia numa das regiões autónomas portuguesas, tendo emigrado entretanto. No inquérito online que preencheu contou que foi vítima de todo o tipo de abusos, ao longo de um ano, em vários espaços – no carro e na casa do padre, na sacristia da igreja. Destes crimes resultou uma gravidez, que foi interrompida. Os abusos terminaram quando a mãe do padre descobriu o que estava a acontecer. “A mãe do padre disse a ele na minha frente que ele nunca mais me tocasse ou ela iria matá-lo com as suas próprias mãos.”https://www.publico.pt/2023/02/13/sociedade/noticia/abusos-sexuais-cinco-farpas-comissao-independente-igreja-catolica-2038722/embed?FromApp=1

Um pedido de desculpas

M. não especifica a idade que tinha quando começaram os abusos, no seminário do Sul do país onde era residente. Nasceu na década de 1960 e o padre que se tornou o seu abusador era alguém de quem “gostava muito”. Chama-lhe “a estrela da companhia”, lembra-se que tocava guitarra com os miúdos. De um beijo, numa ronda nocturna pelas camaratas dos menores, passou-se a carícias no quarto do padre, até a situação evoluir para outro tipo de actos sexuais. Repetiu os contactos sexuais quando estava já no 9.º ano, noutro seminário, e mais tarde, na universidade.

Numa altura, que também não identifica no tempo, o padre, “em plena crise de consciência”, escreveu-lhe, “a pedir desculpa e a dizer que ele próprio fora vítima do mesmo”. Nunca contou aos pais o que lhe aconteceu, mas fê-lo ao longo da vida a três padres, fora da confissão. “Mostraram-se todos surpreendidos e muito compreensivos, convencendo-se de que acreditaram nele. Mas na prática nada foi alterado”, escrevem os membros da comissão.

Colegas e colaboradores

Apesar de os padres representarem 77% dos abusadores referidos à comissão, também houve relatos de violência praticada por outras pessoas ligadas à Igreja.

M., nascido na década de 1950, conta ter sido violado duas vezes por rapazes mais velhos da instituição religiosa de acolhimento de rapazes em que residia. Tinha 12 anos. Chegou a negar à médica de família que tinha sido alvo de abusos, quando ela o questionou directamente sobre isso, por desconfiar de que algo do género lhe acontecera. Mas procurou ajuda, entretanto, para lidar com o que descreve como a “teia psicológica” em que vive.

Outra testemunha identificada como M. tinha 11 anos (nasceu na década de 1970), quando o chefe dos escuteiros começou a abusar dele “regularmente” e ao longo de cerca de um ano. “Costumava organizar algumas actividades só para alguns de nós. Dizia que era um prémio por sermos bons escuteiros. Geralmente era ir passear no seu barco. Houve alguns escuteiros que iam viajar pela Europa com ele como prémio”, contou à comissão, no inquérito online. No barco, o abusador fotografava-o, e a outros menores, nus, isoladamente ou em situações de abuso. Foi expulso do escutismo depois de um chefe regional deste grupo ter descoberto o que se passava, apesar de os padres a quem este chefe questionou lhe terem dito para abafar o caso, “porque só ia dar mau nome ao escutismo e à Igreja”, contou.

Nascida numa região autónoma, na década de 1960, M. emigrou com a família para os EUA, onde frequentava uma igreja gerida por padres açorianos. O seu abusador foi um colaborador desta igreja que, recorda, “andava sempre por lá”. Descreve o mais variado tipo de abusos, incluindo sexo anal e oral, ao longo de cerca de um ano, em espaços tão diversos como o salão paroquial, a sacristia, o escritório do padre, e até por trás do altar. “Essas situações aconteceram a todos os meninos que ajudavam na igreja. O padre sabia, mas nunca fez nada para afastar o homem”, contou à comissão na entrevista por Zoom. No mesmo relato, diz que contou aos pais, mas que estes não acreditaram e que, de castigo, o pai ainda lhe bateu com o cinto.

Linhas de apoio a vítimas de violência sexual

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)

Linha de apoio: 910 846 589 

E-mail: apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência – AMCV

Linha de apoio: 213 802 165 

E-mail: ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação – EIR UMAR

Linha de apoio: 914 736 078 

E-mail: eir.centro@gmail.com

https://www.publico.pt/2023/02/14/sociedade/noticia/49-relatos-sofrimento-fim-igreja-inferno-existe-vai-parar-2038877