OPINIÃO: O bispo José Ornelas está baralhado

LISBON (PORTUGAL)
Público [Lisbon, Portugal]

March 3, 2023

By Bárbara Reis

A Igreja não sabe o que fazer com as denúncias de abusos sexuais feitos por padres. Recebeu a lista de suspeitos e convocou os media. Mas só se ouviu um padre sem empatia e um bispo baralhado.

Em 2021, quando o bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, anunciou que a Igreja Católica ia criar uma comissão independente para fazer o “apuramento histórico” do abuso sexual feito pela Igreja, usou a palavra “unanimidade”.

Entre os bispos, disse, “há absoluta unanimidade” sobre “a necessidade” de se saber a verdade, todos os bispos têm “desejo” e concordam que é preciso “clareza”. “Se houve atitudes de encobrimento no passado, vamos tratá-las.”

Dado o arrastar de anos da Igreja Católica portuguesa para levar a sério o problema dos abusos sexuais, a “absoluta unanimidade” de querer “clareza” parecia inesperada.

Esta sexta-feira, ao ver o bispo Ornelas falar, em conferência de imprensa por si convocada, para anunciar as medidas de resposta ao relatório da comissão independente, houve tudo menos clareza. O que vi foi um homem baralhado, a andar para a frente e para trás, com uma vaga ideia: “[Agora, a Igreja vai] analisar nome a nome [a lista de suspeitos recebida] e ver o que é que ele fez de errado e, depois, tomamos as medidas”.

O tom sem empatia e sem convicção do porta-voz da conferência episcopal, o padre Manuel Barbosa, que falou antes, não ajudou. Quando pediu desculpa aos que sofreram abusos de padres, não teve sequer o cuidado de olhar para a câmara. Olhou para o papel.

O tom vago e baralhado contrasta com o tom concreto e assertivo do relatório Dar Voz ao Silêncio, da comissão independente. Das 486 páginas, 23 são dedicadas às entrevistas que a comissão fez aos bispos portugueses. Dos “detentores do poder eclesiástico”, a comissão entrevistou 19 bispos e 14 superiores gerais de institutos religiosos. Nas respostas, há boas pistas para compreender a confusão de Ornelas.

À comissão, os bispos dizem em sigilo — em off, como se diz na gíria jornalística — coisas que não diriam em público. Sobressaem quatro grupos:

— os que não sabiam, nunca viram nem souberam de nenhum abuso sexual;

— os que despertaram para o problema recentemente;

— os que acham que a informação recolhida pela comissão devia ter sido mantida em segredo, e

— os que dizem que, mais do que as crianças vítimas de abusos, Deus é que foi violentado.

A dimensão dos grupos impressiona. O primeiro inclui todos os bispos. Ou seja, até há pouquíssimo tempo, era inimaginável, para todos, pensarem que havia abusos sexuais feito por padres em Portugal.

O segundo grupo também é quase 100%. Foi com o Papa Francisco que pensaram pela primeira vez que os abusos sexuais por padres são um problema global, da Igreja como um todo, não deste país ou daquele país.

O terceiro grupo — os que queriam uma comissão secreta — é mais pequeno, mas tem adeptos.

O quarto é uma “estreita minoria dos bispos”.

Em Portugal, há 20 bispos e 2700 padres. É deste universo que a comissão trata, se pensarmos nos vivos. Depois de meses de trabalho, foi identificado o número “absolutamente mínimo” de 4815 crianças vítimas de abuso por padres e pessoas ligadas à Igreja nos últimos 70 anos.

O relatório mostra que a “absoluta unanimidade” para a “clareza” é muito porosa. Digo “porosa” para ser simpática.

Um bispo diz que o processo de prestação de contas está a acontecer em Portugal “não porque a realidade o exige, mas porque se ‘vai atrás dos outros’, ‘se acontece a todos, acontece a nós… são as notícias’”. Para fugir ao tema, “desvia”, o verbo é da comissão: “E o abuso sexual na família?! Porque não se fala nisso?!” Hoje chamamos a isto “whataboutismo”.

Além disso, diz outro bispo, há o problema do “declínio moral das sociedades contemporâneas” e o “problema de fundo…” que é a “liberdade sexual”, pois os “problemas que se passam na sociedade passam para a Igreja”. Isto são os bispos a falar.

Outro bispo está preocupado com “o dano moral que falsas acusações podem ter nos sacerdotes”, pois “alguém que se quer vingar por não ter recebido um emprego faz uma denúncia imprópria”. Este bispo acusa até a sociedade civil — a comissão em particular e todos nós em geral — de tomar “uma posição global persecutória sobre o clero”.

Há quem diga que, se tivéssemos outro bispo como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, ainda nem comissão teríamos tido. Mas esta sexta-feira não foi esse Ornelas que emergiu. Estará pressionado, imagino que sim. Até porque, já sabemos, há suspeitas de encobrimento, mas os bispos não sabiam de nada. Se não sabiam de nada, como é que poderiam ter encoberto?

A comissão resume assim as respostas dos bispos sobre o que sabiam:

— Nunca lidei com nenhum caso de abuso sexual de crianças. Nunca. Nem em seminários.

— Não conheço nenhum caso (…), no meu tempo não havia… na minha geração não vejo nenhum colega.

— Tenho conhecimento de falatório, diz-que-diz, sacerdotes jovens da paróquia. (…) Quanto ao padre (julgado e preso), a sensação é que ele foi injustamente castigado (…). Confesso que tenho mais em que pensar.

— No seminário, o assunto de abusos sexuais não era falado. Nem sequer “ruidinho”.

— Não conheço na congregação ninguém vítima de abuso sexual. Falava-se, não é novo para mim. Mas muito vago, não aprofundava polémicas. Nunca tive casos concretos por perto.

Repare: havia “polémicas”, havia o “diz-que-diz” e “falava-se”. Repare também que “não é novo”.

A contradição é evidente. Os bispos não sabiam, mas “não era novo”. Não conheciam, mas “falava-se”. Não sabiam de casos, só sabiam de “polémicas”. Os bispos não sabiam de nada, mas “nos anos 90 já existia o problema, muito antes da entrada em cena de Francisco”. Não sabiam de nada, mas “tudo começou com João Paulo II e Bento XVI”. Não sabiam de nada, mas, “nas missões em África, ‘falava-se muito mais, mas não se actuava… não se dava seguimento”.

É estranho não saberem de nada. Quando, em 1992, o padre Frederico Cunha foi condenado por assassinar um rapaz de 15 anos, soube-se das “polémicas”. Há dez anos que havia “polémicas” na Madeira por causa deste padre.

De tal modo que o bispo do Funchal, Teodoro de Faria, mudava o seu antigo secretário de paróquia em paróquia para abafar as “polémicas”. Caramanchão, São Jorge, Ilha, Machico, Ribeira Grande, Maroces, Água de Pena. Talvez outras freguesias. O padre foi condenado a 13 anos de prisão. O bispo continuou bispo mais 14 anos.

É estranho como milhares de pessoas pelas aldeias, vilas e cidades de Portugal sabiam, mas não os bispos. No relatório da comissão aparecem pais e filhos a fazerem denúncias concretas, mas os bispos nunca ouviram. Aparecem padres a serem mudados de paróquia para calar as queixas, mas os bispos nunca ouviram. Aparecem padres proibidos de receber crianças em confissão e limitados a dar aulas, mas os bispos nunca ouviram.

É estranho porque não há 34 mil padres (esse é o número dos advogados). Nem 60 mil padres (esse é o número dos médicos). Nem 150 mil padres (esse é o número dos professores). Por mais dispersa e díspar que seja a comunidade dos padres, estamos a falar de 2700 homens.

Não sou eu que digo que é estranho. É a comissão independente: “Não deixa de ser estranho, tendo em conta a longevidade da sua trajectória religiosa [a dos bispos, e] a extensão dos domínios da infância em que directamente intervêm. Tanto mais flagrante quanto contrasta, intensamente, com os resultados da recolha de informação empírica que a comissão foi realizando, junto de pessoas vítimas, ao longo do seu mandato.”

“Contrasta intensamente.” Esta sexta-feira, o contraste entre o que se esperava e o que foi dito em Fátima também foi intenso. Uma decepção.

https://www.publico.pt/2023/03/03/sociedade/opiniao/bispo-jose-ornelas-baralhado-2041063